Créditos finais

by Zeh on September 24, 2012

Talvez não seja muito óbvio, mas a economia de consumo Americana funciona de modo completamente diferente da economia Brasileira.

No Brasil, é comum comprar algo a prazo, agendando o pagamento para um número fixo de meses. É assim que conseguimos comprar algo que normalmente não poderíamos pagar à vista. Apesar de detestar comprar qualquer coisa a prazo, eu não sou diferente: comprei minha primeira câmera fotográfica com cheques pré-datados em 3 meses, meu primeiro computador com boletos para pagamento em 12 meses, e meu primeiro carro com pagamentos em 36 meses.

E, imagino, não é algo que varia muito de acordo com a classe econômica ou social de cada indivíduo. Fazer compras a prazo é algo comum para qualquer um. Lembro-me de uma história de uma grande marca de jóias internacional (cujo nome me escapa) que, ao iniciar o comércio no Brasil, viu-se obrigada pelo mercado a fazer vendas a prazo.

A história que eu tinha ouvido falar é que, nos Estados Unidos, ninguém comprava a prazo, criando uma imagem de que todo mundo tinha dinheiro e pagava tudo à vista.

A verdade é um pouco diferente.

Realmente, não existem vendas à prazo aqui. Apesar de existirem empréstimos paga serem pagos a longo prazo (para pagamento de escola, ou financiamento de uma casa, por exemplo), a maioria dos pagamentos é feito à vista.

A diferença é como esse pagamento é feito. Ele é geralmente feito via cartão de crédito; e aí, o pagamento do cartão de crédito, sim, é feito de forma parcelada.

Isso é porque, nos Estados Unidos, o cartão de crédito é quase parte da filosofia local. É normal ter limites absurdos no cartão de crédito – conheço gente com centenas de milhares de dólares de limite – e aí ir carregando a dívida por meses, pagando sempre o valor mínimo por mês. Algo que é, de certa forma, comum no Brasil, mas praticado em menor escala – afinal, quantas pessoas você conhece no Brasil que comprar um carro pelo cartão de crédito? Aqui, é normal.

Além de problemas de endividamento absurdos (muitas pessoas carregam uma dívida de centenas de milhares de dólares mês-a-mês) essa prática cria um cenário estranho, pelo menos para quem estava acostumado com práticas diferentes. Para mim, não fazia muita diferença, já que ainda prefiro pagar tudo à vista (tenho usado cartão de débito para tudo desde que cheguei aqui). Mas tem um fator que causa impacto direto no dia-a-dia dos residentes das terras de Colombo: o chamado Credit Score.

Aqui, como é incomum fazer pagamentos a terceiros via cheques (eles não são muito confiáveis, sendo mais usados pra pagamentos recorrentes como aluguel), não existe nada parecido com SPC ou Serasa; pelo que eu saiba, não existe como consultar se alguém passou cheques sem fundo. E, mesmo se existisse algo, não seria muito usado, já que os pagamentos geralmente são feitos via cartão de crédito.

Por isso, a alternativa Americana é chamada de Credit Score. Nesse grupo enquadram-se três empresas diferentes que monitoram pagamentos feitos a operadoras de cartão de crédito de modo a atribuir a cada indivíduo uma pontuação que indica o quão confiável (ou inadimplente) ele ou ela é.

De certo modo, o funcionamento é melhor do que uma consulta ao SPC ou ao Serasa. Ao invés de informar se um indivíduo passou cheques sem fundo (não confiável) ou não (confiável), o credit score usa uma faixa de valores, dependendo de vários fatores diferentes. Assim, uma conta esquecida não condena ninguém ao limbo financeiro.

O problema é que credit score é checado pra quase tudo. Para alugar uma casa, fazer um contrato de celular, ou comprar um carro, por exemplo, o comércio irá checar seu credit score, e caso ele não seja muito bom, a venda pode ser recusada ou oferecida em termos menos satisfatórios.

Quando eu cheguei nos Estados Unidos, como eu nunca havia usado um cartão de crédito dos Estados Unidos, meu credit score era obviamente inexistente (cartões de crédito “internacionais” não contam). Isso era suficiente para soar os alarmes em vários lugares. Não pude fazer contrato de celular: tive de pegar um pré-pago (que na verdade funcionava como pós-pago), pago à vista, em dinheiro. Na hora de alugar uma casa, tive de fazer um depósito de segurança absurdo (o dobro do normal).

Apesar de não usar cartão de crédito, decidi lidar com a situação e construir meu credit score lentamente, de modo a não ter mais problemas no futuro.

O único modo de construir credit score é tendo um cartão de crédito e usando-o (por algum motivo, o uso de cartão de débito é ignorado). Assim, eu pedi um cartão de crédito ao meu banco. Imaginei que, tendo um emprego, e uma quantia em dinheiro depositada no banco suficiente para pagar algum limite, eles estariam convencidos de que me dar um cartão de crédito seria um bom negócio.

Meu pedido foi recusado.

Pedi de novo. Estava pedindo um cartão com muitos benefícios, talvez; melhor pedir algo mais simples. Afinal, os cartões por aqui são completamente diferentes uns dos outros, não só em função da operadora mas também por causa de benefícios, taxas e anuidades (meu banco tem uns 20 tipos diferentes de cartão para escolher).

Recusado. Desencanei.

Meses depois, fui falar com o gerente. Ele, vendo o dinheiro que eu tinha no banco sem movimentar, recomendou-me fazer um cartão de crédito. Eu disse que queria isso há tempos, mas o banco sempre recusava. Ele falou pra eu tentar de novo, que eu com certeza conseguiria, pareceu confiante, preencheu o formulário do pedido pra mim.

Recusado de novo.

O problema é que as operadoras de cartão de crédito usam o credit score para decidir a quem fornecer um cartão. Afinal, se alguém é inadimplente com outras operadoras, eles seriam inadimplentes com a nova operadora. Meu saldo nunca foi consultado na hora de decidir se sou digno de ter um cartão de plástico com o nome do banco ou não: eles viram que eu nunca paguei ninguém antes, recusaram automaticamente.

Mas é aí que a coisa fica absurda. Se o único modo de construir credit score é usando um cartão de crédito, e o único modo de conseguir um cartão de crédito é com credit score, como alguém efetivamente consegue um cartão de crédito?

Se Kafka fosse transportado para os Estados Unidos do século 21, já sei sobre o que ele escreveria.

(A verdade é que nos Estados Unidos, jovens normalmente conseguem um cartão de crédito em conjunto com seus pais. Isso funciona para que eles comecem a construir um credit score, basicamente usando o credit score de seus pais para iniciar um histórico de pagamentos. Ou isso, ou com o pagamento em dia de mensalidades do empréstimo feito para pagamento da faculdade. Estrangeiros em mudança para o país obviamente são uma exceção às regras estabelecidas e estão ao Deus-dará).

Depois de todo esse imbróglio, e de ficar emputecido com meu banco, decidi ler um pouco sobre o assunto, e seguir a dica de alguns colegas de trabalho que passaram pela mesma situação.

A solução a que cheguei é conseguir um cartão de crédito pré-pago – basicamente, um cartão para pessoas com um crédito horrível – e ir utilizando esse cartão para pequenos pagamentos. Foi o que fiz: consegui um cartão básico da CapitalOne. Tive de fazer um depósito de segurança no valor do meu limite (US$ 200) mas aí comecei a usar o cartão para pagar coisas pequenas como sanduíches, supermercado, e almoços.

Um ano depois, meu credit score estava ótimo. Talvez não excepcional, mas bom o suficiente. O interessante é que todos os pedidos de cartão de crédito que fiz através do meu banco foram contados negativamente no meu credit score (pois podem indicar alguém querendo conseguir mais cartões do que deveria), e reduziram minha pontuação um pouco.

Esse mês, com meu credit score finalmente bom o suficiente, fiz o pedido de um cartão de crédito de verdade no meu banco.

Finalmente foi aceito. Ou seja, três anos depois de chegar aqui, finalmente tenho um cartão de crédito normal e um bom credit score no país.

(Minha conta de celular também foi mudada recentemente: finalmente tenho um contrato pós-pago normal).

O moral da história é que apesar de toda a confusão, o credit score é algo fácil de construir. Imagino que 6-12 meses sejam suficientes para isso. Mas é algo difícil para quem não tem a receita do bolo.

Fica, então, meu tutorial para imigrantes ou moradores de longos períodos no império do norte:

  1. Consiga um cartão de crédito criado para maus pagadores. O recomendado (e que eu fiz) é o Capital One Platinum, que te obriga a fazer um pagamento inicial como segurança.
  2. Use o cartão para fazer compras. Não precisa ser nada absurdo; eu mesmo utilizei o meu cartão minimamente. O importante é fazer o pagamento em dia.
  3. Espere 6 meses.
  4. Cheque seu credit score (sites por aí fazem isso por uma taxa).
  5. Se for considerado bom, faça o pedido de seu cartão de crédito normal.
  6. Cancele seu cartão anterior (Capital One, ou o que for).
  7. Profit!

Cancelei meu Capital One hoje. Não espero usar meu cartão de crédito para crédito mesmo. E meu limite ainda é razoavelmente baixo. Mas pelo menos sei que agora, quando quiser comprar algo mais caro que um saco de pipocas, não terei problemas de ser recusado.

Nota importante: não faça pedido por cartões para outros bancos (isso vai afetar seu credit score negativamente). Não importa o banco. Mesmo se você tem conta no HSBC Brasil, por exemplo, o HSBC daqui não vai saber se você é um bom pagador. Até porque o credit score é controlado por órgãos independentes. A menos que um gerente garanta te conseguir um cartão independente do seu credit score, não caia nessa conversa.